quinta-feira, 4 de junho de 2009

Quem rouba um cego...

Ariosto entrou no ônibus e sentou-se no banco que fica atrás do motorista, reservado às pessoas portadoras de deficiência ou idosas. Trazia sua bengalinha, prova de sua deficiência visual. O banco estava vazio, e ele sentou junto à janela. Entrou, no ponto seguinte um sujeito estranho, que depois de parar por alguns segundos em frente à catraca, sentou-se junto a ele, ao corredor.

Era um mulato alto e forte, e parecia muito alegre. Entrou cantarolando, de modo espalhafatoso, e estendeu a mão a Ariosto, cumprimentando-o ruidosamente. Fez perguntas, comentou vários assuntos, como se fossem velhos conhecidos. Ariosto ia respondendo por monossílabos. O estranho cumprimentou também o motorista, fazendo-o estender o braço direito para trás sem deixar a direção do coletivo.

Alguns minutos depois levantou-se e pediu ao motorista que o deixasse no ponto seguinte, alegando não ter dinheiro para a passagem. "Nós não somos amigos, meu camarada?" O motorista, fazendo gestos indicando que o cara era pinéu, começou a encostar o ônibus.

De maneira casual, automática, Ariosto colocou a mão no bolso direito da calça e percebeu que estava vazio.

- Não abra a porta, motorista! Esse sujeito me roubou!

O motorista deu uma freada brusca. O sujeito fez cara de espanto e nem abriu a boca para protestar. Os demais passageiros, quase ao mesmo tempo, levantaram-se e passaram a xingá-lo, e só não o agredram fisicamente porque a catraca o impedia. Logo surgiu uma viatura da polícia, que intimou o motorista a abrir a porta.
O indivíduo não esboçou qualquer gesto de fuga. Ariosto e o motorista, falando ao mesmo tempo, explicaram o que acontecia.

Os policiais apenas escutaram com certa impaciência, pedindo que cada um falasse por sua vez. Depois os homens da "justa" agarraram o cara e colocaram, aos trancos, no porta-mala da viatura, sem que ele esboçasse qualquer reação. Convidaram Ariosto a entrar na porta da frente, anotaram os dados do motorista, para ouvi-lo posteriormente, e intimaram três passageiros a acompanhá-los até a chefatura, como testemunhas. Ao contrário do que costuma acontecer, todos concordaram, e se fosse preciso haveria mais testemunhas. Todos se indignam contra ladrões, principalmente contra quem tem coragem de roubar um pobre ceguinho.

- Eu tinha vinte e dois reais no bolso da calça - explicou Ariosto à autoridade. - Uma nota de dez, duas de cinco, uma de dois e uma de um real. Esse cidadão sentou-se ao meu lado, começou a tagarelar, e quando levantou-se, notei falta do meu dinheiro. Só pode ser ele.


- Como o senhor pode ter certeza dessa quantia, e de quantas notas, exatamente, levava? - perguntou o comissário.

Sou deficiente visual, e por isso mesmo sou obrigado a prestar muita atenção em tudo que faço. Sempre que saio de casa levo o dinheiro que tenho, contadinho. Anoto mentalmente tudo que gasto, e quando volto guardo direitinho, junto com os documentos, numa caixinha que tenho, na
primeira gaveta da cômoda, à esquerda. Tenho um resíduo de visão, e sei distinguir o valor das cédulas. Das moedinhas, não.

O comissário e o escrivão riram, comentando que dinheiro até cego conhece. Ariosto continuou.

- No domingo eu tinha uma nota de cinqüenta reais. Fui, com minha irmã, meu cunhado e meus sobrinhos, um menino de oito anos e uma menina de seis anos a uma macarronada provida pela paróquia do nosso bairro. Moro com eles, num quartinho que eles construíram nos fundos. Levei também uma filha que tenho com a ex-mulher. Ela tem dezesseis anos. Minha irmã e meu cunhado já tinham convite, as crianças não pagam. Comprei convites para mim e para a minha filha. Cada um custa cinco reais. Deram o troco em duas notas de dez, quatro de cinco, uma de dois e uma de um real. Comprei seis refrigerantes, a dois reais cada. Voltei para casa com vinte e oito reais.

Aceitou um cafezinho que lhe ofereceram para acalmá-lo. O acusado, mudo e trêmulo, fez um gesto com as mãos, recusando. Nem parecia aquele cara tagarela do ônibus.
- Na segunda-feira eu não saí de casa - continuou Ariosto contando.
- Na terça-feira fui a um curso de adaptação para deficientes visuais que freqüento às terças e
quintas-feiras.
Levei os vinte oito reais e comprei uma rifa de cinco reais para a instituição. Ontem não saí de casa, não gastei nada. Hoje, quinta-feira, eu só tinha que ter os vinte e três reais que falei.

O suspeito foi interrogado. Chamava-se Warley, tinha vinte e oito anos, era casado, tinha cinco filhas, todas meninas, morava numa favela e estava desempregado. Levaram-no a uma sala especial, tiraram-lhe toda roupa e examinaram detidamente, até suas partes íntimas, e nada acharam. O rapaz não tinha um centavo. Trazia apenas seu RG e uma carteira profissional, sem anotação de emprego nos últimos oito meses. Anteriormente, porém, trabalhara como ajudante em uma obra. Não tinha ficha na Polícia.

- Sinto muito, seu Ariosto, mas quase nada podemos fazer - disse o comissário. - Mandarei inspecionar o ônibus na garagem, mas dificilmente acharemos o dinheiro ou alguma coisa que prove o roubo. O senhor, seu Warley, está dispensado por enquanto. Pode ir embora, mas não se ausente de casa por mais de vinte e quatro horas, pelo menos nos próximos três meses. O senhor pode ser intimado a qualquer momento.

Ariosto despediu-se cordialmente de todos, agradecendo pela colaboração.

No fundo, porém, lamentava a inépcia da Polícia, incompetente para resolver um caso tão simples. Não lamentava a quantia perdida, pois quase não precisava de dinheiro. O que doía era ter sido lesado. Não havia tempo, nem ele tinha disposição para ir ao curso naquele dia. Voltou para casa.

Ao chegar, guardou religiosamente os documentos na caixinha de plástico branca, na primeira gaveta, à esquerda da cômoda. Ao olhar para o fundo da tal caixinha, la estava o dinheiro, dobradinho, como deixara na terça-feira. Uma nota de dez, duas de cinco, uma de dois e uma de um real.

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