quinta-feira, 4 de junho de 2009

Biografia de Castelo Hanssen

Aristides Castelo Hanssen (São Paulo, 3 de setembro de 1941) é um jornalista brasileiro.

É fundador do Colégio Brasileiro de Poetas de Mauá, do grupo Literário Letraviva de Guarulhos e da Academia Guarulhense de Letras. É presidente honorário da Sociedade Guarulhense de Cultura Artística.

Iniciou a carreira escrevendo crônicas para os semanários "A Ação" e "Tribuna Popular" de Santo André (SP). Iniciou o trabalho profissional como repórter na Folha Metropolitana (Santo André, SP), transferindo-se depois, para a Folha Metropolitana de Guarulhos, onde foi editor de política, assinou a coluna No Mundo da Música Sertaneja, e coordenou o suplemento Folha Literária.

De 1984 a 2001 trabalhou no jornal Olho Vivo de Guarulhos. Aposentou-se por deficiência visual. Continuou como colaborador até 2004, com artigos semanais, abordando temas do momento de forma poética e bem humorada. Em 2007 voltou a escrever artigos semanais para o Diário de Guarulhos.

Em 1997 recebeu o troféu Paulo Francis, outorgado pela Tribuna de Guarulhos.

Em agosto de 2008 foi eleito presidente da Academia Guarulhense de Letras.


Obras
Canção pro Sol Voltar, Guarulhos

A Flor que Drummond viu Nascer no Asfalto (Biblioteca Monteiro Lobato, Guarulhos) (2008)

Sonhos

Eu já fui um astronauta, fui piloto de avião, fui o bom do bang-bang,
fui índio e fui vilão, fui herói de muitas guerras, fui perigoso espião.


Eu fui tudo que quis ser
da maneira que gostava,
pois eu era uma criança
e pela vida sonhava,
que era tudo que eu sonhava, ser gente grande.
Tinha pressa, muita pressa, mas o tempo não passava.


Agora meu tempo passa,
corre que ninguém alcança.
De repente fiquei velho,
criei banha, criei pança,
e meus sonhos de aventura
só ficaram na lembrança.
Só tenho um sonho impossível,
é voltar a ser criança.

Trocando os pés pelo traseiro

Dia desses, eu estava num ponto de ônibus, esperando por alguém. Era um desses pontos de parada completos, instalados por alguma administração pública, não me lembro quando, com banco e tudo mais. E estava intacto. Isso porque grande parte desses pontos já foram depredados por vândalos, essa praga dos dias de hoje. São talvez uma parte mínima da população, se divertem em fazer o mal e causam estragos para toda a gente. Depois, critica-se as administrações públicas pelos grandes problemas urbanos, causados por esses animais não-civilizados.

Ao meu lado, havia um garotão, aparentando uns vinte anos, bem vesitdo, de roupa esportiva, não tendo nada que lembrasse um animal. So que, em vez ´de sentar como as pessoas sensatas fazem, estava com o traseiro no encosto e os pés no lugar onde se costuma colocar a parte mais caluda do corpo. Tive ímpeto de perguntar-lhe porque fazia isso, e como ele se sentava em sua casa, à mesa das refeições. Me contive, para evitar uma resposta atravessada e para não parecer um velho rabujento. Esse jeito de sentar-se é uma das manias entre jovens e adolescentes de ambos os sexos, e até com alguns adultos. Será que essa gente não sabe qual é o lugar dos pés e qual é o lugar do traseiro. Talvez a alegação é que os outros fazem isso e eles têm medo de sujar sua calça. Mas de onde partiu essa mania? É a velha história da galinha e dos ovos: quem nasceu primeiro?

O piso do ponto é mais elevado do que o da calçada normal, outra boa iniciativa da administração municipal, para que as pessoas notadamente idosos e doentes, não tenham que fazer muito esforço para embarcar. mas não há um só motorista que encoste seu veículo nesse piso. As pessoas têm que descer até o nível da rua e depois levantar as pernas para levantar. Aí parece uma condição corporativa. Por que será que acontecem essas coisas?

Cidadania é a palavra da moda. É explicada nas escolas, em campanhas educativas e aborda uma série de coisas particulares que prejudicam a todos. Jogar lixo no chão, jogar ponta de cigarro em qualquer lugar, sujar rios e córregos, pixar muros e paredes, enfim, uma série de coisas que todo mundo já sabe que não deve fazer. Mas essa dos pontos de ônibus parece que ainda não foi abordada por ninguém.

Muito faz quem não aborrece

No último sábado, dia 23, passei quase o dia inteiro na Casa dos Cordéis, ponto de Cultura situado no Anel Viário, Gopoúva. À tarde houve um sarau, e durante todo dia apareceram pessoas interessadas em conhecer o espaço. É muito agradável permanecer algumas horas naquele aprazível casarão dos Nader. Lá pelas tantas, porém, pouco antes do meio-dia, estacionou num dos canteiros um desses carros de propaganda e lá permaneceu algumas horas, fazendo um estardalhaço dos diabos. Cantarolava um desses jingles chatos que não primam nem pela qualidade poética nem pelo valor musical. Depois aparecia a fala de um cara se apresentando como candidato a vereador e prometendo lutar pela população do bairro. Esportes, saneamento básico, melhor transporte, escolas, saúde, educação e outros lugares comuns eram repetidos pelo candidato, sem o menor esforço de imaginação.

Depois, a mesma voz, usando agora a terceira pessoa, repetia o nome do candidato e citava, seguidamente, uma dezena de milhar. Depois começava tudo de novo, depois outra vez, depois novamente, sem se incomodar com o ouvido de quem, por acaso, passasse por ali. Trabalhadores do Saae que executavam um serviço no local começaram a fazer piadas sobre o tal candidato.

Já tenho meu candidato a prefeito. Ainda não sei em quem votarei para vereador. E não é por falta de opção, como dizem os pessimistas. Ao contrário, conheço pelo menos uma dezena de pessoas sérias e decentes nos mais diversos partidos políticos, nos quais eu sei que meu voto não seria perdido, embora não espere deles nenhum milagre.

Uma coisa é certa: nesse tal candidato (está me dando comichão de falar seu nome) jamais votaria, em hipótese alguma. E tenho a impressão que todas as pessoas que permaneceram no local por algum tempo terão a mesma decisão. O tal candidato parece-me que fez papel de bobo, gastando tempo e dinheiro para deixar o povo bronqueado com ele.

Um amigo meu disse que não vota em candidato que faz barulho pela rua. Talvez ele exagere, pois de alguma forma os candidatos precisam divulgar sua disposição. Um pouquinho de inteligência, porém, não faz mal a ninguém.

Quem rouba um cego...

Ariosto entrou no ônibus e sentou-se no banco que fica atrás do motorista, reservado às pessoas portadoras de deficiência ou idosas. Trazia sua bengalinha, prova de sua deficiência visual. O banco estava vazio, e ele sentou junto à janela. Entrou, no ponto seguinte um sujeito estranho, que depois de parar por alguns segundos em frente à catraca, sentou-se junto a ele, ao corredor.

Era um mulato alto e forte, e parecia muito alegre. Entrou cantarolando, de modo espalhafatoso, e estendeu a mão a Ariosto, cumprimentando-o ruidosamente. Fez perguntas, comentou vários assuntos, como se fossem velhos conhecidos. Ariosto ia respondendo por monossílabos. O estranho cumprimentou também o motorista, fazendo-o estender o braço direito para trás sem deixar a direção do coletivo.

Alguns minutos depois levantou-se e pediu ao motorista que o deixasse no ponto seguinte, alegando não ter dinheiro para a passagem. "Nós não somos amigos, meu camarada?" O motorista, fazendo gestos indicando que o cara era pinéu, começou a encostar o ônibus.

De maneira casual, automática, Ariosto colocou a mão no bolso direito da calça e percebeu que estava vazio.

- Não abra a porta, motorista! Esse sujeito me roubou!

O motorista deu uma freada brusca. O sujeito fez cara de espanto e nem abriu a boca para protestar. Os demais passageiros, quase ao mesmo tempo, levantaram-se e passaram a xingá-lo, e só não o agredram fisicamente porque a catraca o impedia. Logo surgiu uma viatura da polícia, que intimou o motorista a abrir a porta.
O indivíduo não esboçou qualquer gesto de fuga. Ariosto e o motorista, falando ao mesmo tempo, explicaram o que acontecia.

Os policiais apenas escutaram com certa impaciência, pedindo que cada um falasse por sua vez. Depois os homens da "justa" agarraram o cara e colocaram, aos trancos, no porta-mala da viatura, sem que ele esboçasse qualquer reação. Convidaram Ariosto a entrar na porta da frente, anotaram os dados do motorista, para ouvi-lo posteriormente, e intimaram três passageiros a acompanhá-los até a chefatura, como testemunhas. Ao contrário do que costuma acontecer, todos concordaram, e se fosse preciso haveria mais testemunhas. Todos se indignam contra ladrões, principalmente contra quem tem coragem de roubar um pobre ceguinho.

- Eu tinha vinte e dois reais no bolso da calça - explicou Ariosto à autoridade. - Uma nota de dez, duas de cinco, uma de dois e uma de um real. Esse cidadão sentou-se ao meu lado, começou a tagarelar, e quando levantou-se, notei falta do meu dinheiro. Só pode ser ele.


- Como o senhor pode ter certeza dessa quantia, e de quantas notas, exatamente, levava? - perguntou o comissário.

Sou deficiente visual, e por isso mesmo sou obrigado a prestar muita atenção em tudo que faço. Sempre que saio de casa levo o dinheiro que tenho, contadinho. Anoto mentalmente tudo que gasto, e quando volto guardo direitinho, junto com os documentos, numa caixinha que tenho, na
primeira gaveta da cômoda, à esquerda. Tenho um resíduo de visão, e sei distinguir o valor das cédulas. Das moedinhas, não.

O comissário e o escrivão riram, comentando que dinheiro até cego conhece. Ariosto continuou.

- No domingo eu tinha uma nota de cinqüenta reais. Fui, com minha irmã, meu cunhado e meus sobrinhos, um menino de oito anos e uma menina de seis anos a uma macarronada provida pela paróquia do nosso bairro. Moro com eles, num quartinho que eles construíram nos fundos. Levei também uma filha que tenho com a ex-mulher. Ela tem dezesseis anos. Minha irmã e meu cunhado já tinham convite, as crianças não pagam. Comprei convites para mim e para a minha filha. Cada um custa cinco reais. Deram o troco em duas notas de dez, quatro de cinco, uma de dois e uma de um real. Comprei seis refrigerantes, a dois reais cada. Voltei para casa com vinte e oito reais.

Aceitou um cafezinho que lhe ofereceram para acalmá-lo. O acusado, mudo e trêmulo, fez um gesto com as mãos, recusando. Nem parecia aquele cara tagarela do ônibus.
- Na segunda-feira eu não saí de casa - continuou Ariosto contando.
- Na terça-feira fui a um curso de adaptação para deficientes visuais que freqüento às terças e
quintas-feiras.
Levei os vinte oito reais e comprei uma rifa de cinco reais para a instituição. Ontem não saí de casa, não gastei nada. Hoje, quinta-feira, eu só tinha que ter os vinte e três reais que falei.

O suspeito foi interrogado. Chamava-se Warley, tinha vinte e oito anos, era casado, tinha cinco filhas, todas meninas, morava numa favela e estava desempregado. Levaram-no a uma sala especial, tiraram-lhe toda roupa e examinaram detidamente, até suas partes íntimas, e nada acharam. O rapaz não tinha um centavo. Trazia apenas seu RG e uma carteira profissional, sem anotação de emprego nos últimos oito meses. Anteriormente, porém, trabalhara como ajudante em uma obra. Não tinha ficha na Polícia.

- Sinto muito, seu Ariosto, mas quase nada podemos fazer - disse o comissário. - Mandarei inspecionar o ônibus na garagem, mas dificilmente acharemos o dinheiro ou alguma coisa que prove o roubo. O senhor, seu Warley, está dispensado por enquanto. Pode ir embora, mas não se ausente de casa por mais de vinte e quatro horas, pelo menos nos próximos três meses. O senhor pode ser intimado a qualquer momento.

Ariosto despediu-se cordialmente de todos, agradecendo pela colaboração.

No fundo, porém, lamentava a inépcia da Polícia, incompetente para resolver um caso tão simples. Não lamentava a quantia perdida, pois quase não precisava de dinheiro. O que doía era ter sido lesado. Não havia tempo, nem ele tinha disposição para ir ao curso naquele dia. Voltou para casa.

Ao chegar, guardou religiosamente os documentos na caixinha de plástico branca, na primeira gaveta, à esquerda da cômoda. Ao olhar para o fundo da tal caixinha, la estava o dinheiro, dobradinho, como deixara na terça-feira. Uma nota de dez, duas de cinco, uma de dois e uma de um real.

Depois do suicídio

"Desculpem-me, mas eu decidi ir embora deste mundo medíocre. Se só os incompetentes tem vez, não há lugar para mim, que sei o que faço, e preocupo-me em fazer bem. Não culpo a ninguém, culpo apenas a esta Sociedade burra e podre." Leu e releu várias vezes sua carta-suicída, para ter certeza que não daria aos pósteros motivo de críticas. Achou meio pedante, mas - que diabo! - um suicida tem o direito de ser pedante. Aliás, essa era a idéia que tinha de si mesmo e do mundo, mas nunca falara com ninguém para não parecer ridículo. Mas agora que ia
morrer...

Um pouco de razão ele tinha. Desde criança era tido como uma criança esperta e inteligente, com raciocínio rápido, com muitas idéias. Chegou a ganhar um concurso infantil de redação. Queria ser ator, escritor, e muitas coisas mais. Mas nunca chegou a definir exatamente o que queria. Participou de peças teatrais infantís e de grupos amadores adultos, recitava poesias de sua autoria em festinhas, e era muito elogiado. Mas tinha preguiça de estudar, não foi além da sexta
série. Queria fazer de tudo, mas nem pensava em se sujeitar a um emprego rotineiro, com chefe, horário e outras coisas chatas.

Há uma semana o tempo estava carrancudo. Chuvas fortes se intercalavam com garôa intermitente, ventos fortes açoitavam as pessoas e as coisas sem parar. Não saia mais de casa, estava enferrujando. Sem em´prego, sem dinheoiro, a despensa quase vazia, quase sem roupa, e ainda essa chuvinha chata. Tempo propício para um bom suicídio. Pecado? Se Deus se dá o direito de fazer um tempo desses, não tem moral para julgar ninguém.

Colocou a carta em cima da escrevaninha que servia também para as refeições (quando havia), e pôs ao lado todos os troféus e diplomas ganhos em concursos culturais, para que todos vissem que o mundo perderia um gênio. Depois rasgou ao meio a velha carteira profissional, sem nenhum emprego anotado, e jogou por cima. Botou para fora Frederico, o gato que costumava dormir na sua cama, e fechou bem a porta e a janela do quartinho. O bichano protestou, com miados resmungões, sem saber que eram as suas sete vidas que estavam sendo poupadas. Abriu as quatro bocas do fogão e deitou-se na cama, cobrindo-se com os dois cobertores que ainda tinha. Estava frio, e um homem que vai morrer tem direito a certo conforto.

Estava quase dormindo quando sentiu uma mão macia acariciando suas coxas e depois o pênis. Era Marlene Gata, a bela e gostosa morena que chegou a ser sua namorada, e depois se casou com seu melhor amigo, formado em Engenharia, com um bom emprego. Acariciou-a também, primeiro no rosto, depois no pesoço, ceios e... Quando se preparava para abaixar as mãos, a doida saltou da cama e fugiu pela janela. Saiu em sua perseguição, rua afora, mas perdeu-a de vista.

Quando deu pela coisa, já estava correndo, só de cuecas, rasgadas, em plena avenida Paulista. Mas em vez de carros correndo, o que viu eram tranquilas vacas pastando. Passou entre elas e começou a subir a ladeira Porto Geral, que se tornava cada vez mais longa e íngreme. Passou por vãrios amigos a quem emprestara dinheiro e nunca pagaram, e eles nem lhe deram atenção. Passou também por pessoas a quem devia dinheiro, que o olharam interrogativamente. Em certo momento viu, descendo a ladeira o dono da empresa que o demitira após seu primeiro
mês de trabalho, sem registrá-lo em carteira.
Pensou em chutar-lhe a imensa barriga, mas não fez. Depois vinha descendo o dono da lanchonete que não fiava mais porque sua conta estava muito grande. Carregava uma bandeja cheia de petiscos. Catou uma coxinha e saiu correndo ladeira acima. Quando percebeu estava na porta do céu. Deus apareceu, carrancudo, perguntando o que fazia alí, naquela hora, só de cuecas.
Agarrou no colarinho do Todo Poderoso e gritou: "Porque Você me abandonou? Eu não mereço isso." Levou um empurrão e caiu do céu. Teria se esborrachado se não acordasse naquela hora.

Um sól forte mostrava sua luz pelas frestas da veneziana, tentando compensar tantos dias de chuva. Enfiou a mão debaixo do travesseiro e encontrou um maço de cigarros mata-rato, ainda com um cigarro dentro, todo amassado. Na cadeira que servia de criado-mudo havia uma caixa de fósforos, com um palito. Acendeu o cigarro, tossiu e percebeu um leve cheiro de gás. Lembrou-se da noite anterior, e admirou-se por ainda estar vivo, principalmente após ter acendido o cigarro. A casa deveria ter voado pelos ares.

Levantou-se preguiçosamente, deu uma olhada em torno, e viu que as quatro bocas do fogão estavam abertas, mas o gás havia acabado, talvez nos primeiros minutos da noite.